Reforma da Previdência II – a parte ruim

No texto anterior (aqui) argumentei porquê a reforma da previdência é necessária e apresentei o que julgo ser o lado bom da proposta enviada pelo governo. Mas ela também contém inúmeros potenciais problemas, dos quais trato agora.

Começo com quatro pontos discutíveis. Primeiro, mesmo a aposentadoria por idade que vigora hoje (já em 65 anos) exige que a pessoa tenha contribuído por pelo menos 15 anos, e o governo quer aumentar esse mínimo para 25 anos. Os MUITO pobres já nem completam os 15 anos atuais, e recebem outro tipo de assistência (mais sobre isso adiante), mas há trabalhadores para quem o aumento da exigência de 15 para 25 anos de empregos formais inviabilize a aposentadoria, ou torne o caminho um calvário. Esse é um problema real ou apenas hipotético? De acordo com o secretário da previdência Marcelo Caetano, essa dificuldade afetaria pouca gente. Seu argumento se baseia no seguinte: muita gente contribui por 15 anos e depois, mesmo podendo contribuir por mais tempo, para de contribuir, já que sua aposentadoria está garantida. Por isso, estatísticas de quantos aposentados hoje tiveram menos de 25 anos de contribuição não diz muita coisa. De acordo com o secretário, os números (que não vi) mostram que a realidade atual do mercado de trabalho permitiria que quase todos que hoje chegam aos 15 anos de contribuição cheguem aos 25. Assim, a adoção dos 25 anos acabaria com a prática nociva de interromper a contribuição, trazendo um bom ganho de arrecadação com poucas consequências sociais adversas. Você decide no que quer acreditar – eu, mesmo sem certeza, tendo a acreditar no secretário, que julgo ser um acadêmico sério, preocupado com questões sociais, que entende bastante de previdência e não tem o hábito de distorcer números para amparar argumentos falsos. Ainda assim, falta na proposta alguma política para proteger os que de fato não consigam completar os 25 anos (ainda que sejam poucos), como uma aposentadoria com desconto proporcional ao tempo faltante.

O segundo tema discutível diz respeito à proposta de eliminação da diferença que permite às mulheres se aposentarem 5 anos mais cedo que homens. É um fato que as mulheres trabalham a “dupla jornada”, e que gastam muito mais tempo cuidando dos afazeres domésticos que os homens (isso não é opinião, são dados). Alguns dizem que não cabe à previdência compensar essas distorções, que deveriam ser tratadas em sua raiz; outros dizem que o benefício dado às mulheres pouco fez para atenuar esse problema, e não vale insistir numa política que não funciona; há também quem diga que as mulheres que mais sofrem com a dupla jornada são as mais pobres, que nem conseguem contribuir e por isso só recebem benefícios da LOAS (explico adiante), que não faz distinção de gênero e, portanto, a diferença de idade só beneficia as mais ricas. Discordo desses argumentos porque apesar da aposentadoria não resolver desigualdades do mercado de trabalho (e da vida), acabar com o benefício adicionará mais um problema à lista das mulheres. Também não dá pra dizer que quem se aposenta por idade com um salário mínimo é rica. Em outras palavras, o problema pode ser outro, mas aumentá-lo não me parece uma boa política. Quando houverem políticas efetivas no mercado de trabalho, aí sim poderemos discutir a igualdade na idade de aposentadoria ou qualquer outro “privilégio” das mulheres, que vivem um pouco mais (e portanto recebem por mais tempo, além de se aposentarem mais cedo), mas trabalham MUITO mais e ganham menos.

Terceiro, há uma discussão importante em torno da aposentadoria rural. Hoje, trabalhadores rurais que completem 60 anos recebem um salário mínimo, sem que nunca tenham contribuído com a previdência. A expectativa de vida em áreas rurais não é tão menor que nas áreas urbanas, e também por isso o governo propõe igualar a idade mínima aos 65 do restante da população, além de passar a cobrar alguma contribuição dos trabalhadores (que seria bem menos rigorosa que a regra geral e respeitaria a sazonalidade das colheitas). Em geral, acho que não devemos entrar na discussão se alguns empregos merecem uma idade de aposentadoria menor por serem mais desgastantes, uma vez que o critério é extremamente subjetivo (por exemplo: garçom fica muito tempo em pé; motorista de ônibus, muito tempo sentado). Mas o trabalho rural parece ser uma clara exceção, me levando a defender um desconto na idade de aposentadoria. “Mas e os lixeiros e pedreiros, que têm empregos bem similares à roça?”. Pois é, a questão é complicada e por isso não tenho opinião forte sobre o assunto – sempre haverá um motivo para dar desconto para alguém, e a dificuldade de traçar uma linha pode ser motivo para não dar desconto para ninguém. Já a ideia de passar a cobrar uma contribuição (pequena) me parece ser um passo bom na direção de reduzir desigualdades entre pobres rurais e pobres urbanos. Essa medida também pode evitar fraudes, e há evidências fortes de um alto índice, já que a regra para que se comprove ser um trabalhador rural é bem frouxa. Outro benefício é que trabalhadores rurais passariam a ser elegíveis a outros benefícios de proteção social do INSS (auxílio doença, etc.).

Quarto, o governo propõe proibir o acúmulo de benefícios e limitar a pensão por morte. A primeira regra impede que uma viúva aposentada, por exemplo, receba sua aposentadoria em adição à do marido falecido (quem já recebe não é afetado, essa é uma regra para o futuro). A segunda estabelece que a pensão por morte (viúvos e órfãos) passará de 100% do benefício original do falecido para 50%, mais 10% para o viúvo e para cada dependente menor de 18 anos. A ideia é que com uma pessoa a menos na família, os gastos ficam menores. Implícito nos números está que 50% dos gastos seriam fixos (aluguel, por exemplo), e cada pessoa gastaria mais 10% na média com alimentação, vestuário, etc. Faltou o governo mostrar, com dados, se essa proporção reflete a realidade. Ainda que mostre, a regra implica que o benefício pode ficar abaixo do piso de um salário mínimo, o que é um problema, além de afetar famílias pobres que sobrevivem, por exemplo, às custas de uma aposentadoria e uma pensão. Mas é preciso criar mecanismos melhores que os existentes, já que 75% das pensões vão para as mãos dos 30% mais ricos da população, e o gasto elevado com pensões em comparações internacionais evidenciam uma distorção a ser corrigida. A proposta do governo parece ir na direção certa, mas precisa adicionar proteções aos mais pobres.

Agora vamos a um ponto que julgo inequivocamente ruim. Uma política de erradicação de pobreza que funcionou muito bem foi o LOAS (ou BPC), que desde a época de FHC vem sendo aprimorado e hoje é responsável por ter quase zerado a pobreza entre idosos no país. O programa oferece um salário mínimo para qualquer pessoa de mais de 65 anos e que seja muito pobre (renda familiar inferior a um quarto de salário mínimo por pessoa), sem necessidade de ter contribuído para a previdência. O governo propõe aumentar, progressivamente, a idade mínima para 70 anos, e desvincular o benefício do salário mínimo, reajustando-o de acordo com alguma regra que será definida em outra lei (mas que certamente incorporará ao menos o reajuste pela inflação). É um tiro direto nos mais pobres da população, por isso acho a proposta ruim. Alguns argumentam que a idade mínima maior que a das aposentadorias comuns é importante para evitar que alguns desistam de contribuir, na garantia de receber o LOAS também aos 65 anos. Ocorre que além do sistema já funcionar com idades iguais, me parece bem cruel exigir que alguém que vive com um quarto de salário mínimo ainda contribua com a previdência, ou seja, o “risco” de pararem de contribuir é, para mim, uma coisa boa. Vários veículos sugeriram que essa mudança pode ser apenas um “excesso intencional”, como se o governo estivesse deliberadamente propondo algo duro demais simplesmente para ter algo a ceder nas negociações com o congresso. Espero que assim seja! O BPC/LOAS tem problemas sérios, já que, por exemplo, as regras atuais abrem buracos que permitem que quase metade dos benefícios acabe nas mãos dos 40% mais ricos da população (e só 12% vão para os 20% mais pobres). Isso precisa ser modificado, e aí a proposta do governo é boa – mas só aí, não no aumento da idade mínima para receber o benefício.

Há também tudo aquilo que seria bom, mas ficou de fora da proposta: a aposentadoria dos militares e dos servidores estaduais e municipais*; redução do teto para um nível condizente com a renda média da população (hoje apenas um pentelhésimo da população recebe o teto, o que atesta seu patamar elevado); uma maior progressividade nas contribuições; o fim das desonerações a setores como o agronegócio, hospitais e escolas privados e profissionais liberais relativamente ricos do Simples Nacional e do MEI; entre outras.

Com lados bons e ruins, fica a questão: apoiar ou não apoiar a reforma? Concluo no próximo mini-texto (aqui).

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*no texto inicialmente publicado, havia aqui o seguinte parêntese: “(esses últimos talvez por um bom motivo, já que há um problema de competência do governo Federal para regular questões regionais – juristas, manifestem-se!)”. Os juristas se manisfestaram, e resolvi tirar isso do texto.

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