Licença Política

Assim como a licença poética permite que se transpasse regras gramaticais em prol da qualidade estética, a “licença política” parece permitir que rigor, objetividade e coerência intelectual sejam colocados em segundo plano, abrindo espaço para a defesa política de uma causa. Em um vale-quase-tudo caracterizado por certezas, provas cabais, oponentes ignorantes ou ignóbeis e tramas com finalidades ocultas, a complexidade de vários debates perde a vez e cede lugar à simplicidade maniqueísta de embates políticos. Ela pode por vezes ser útil, mas certamente não sempre.

A licença política é frequentemente utilizada na catalisação da defesa de causas nobres, consolidando grupos mais coesos e numerosos para lutas importantes. Certamente não é possível lutar politicamente por uma causa sem união, e é por isso que políticos podem – e talvez devam – fazer amplo uso desse recurso. É o restante da sociedade que talvez precise repensar o quanto quer de conforto intelectual e sentimento de pertencimento a um movimento (de ideais parecidos com os seus) em detrimento de uma postura crítica que gera amadurecimento e constrói novas alternativas em temas específicos. Abordo esses dois “âmbitos” abaixo.

No âmbito político a coisa é complicada, e só esboço uma provocação. A fragilidade de uma união pode estar tanto no potencial de atrair menos (ou repelir mais) os não convencidos quanto no número dos já adeptos, e movimentos fortes precisam encontrar um equilíbrio entre os dois. Se licenças políticas tendem a fortalecer o segundo, geralmente enfraquecem o primeiro, exigindo habilidade dos líderes e formadores de opinião. Eles estão cometendo excessos para algum lado? Não sei, apenas levanto a questão.

Já fora dessa esfera, será que queremos politizar todas as manifestações de ideias em todos os aspectos da vida? Para mim, a resposta é “depende”, e precisamos saber aonde e em que medida a licença política é adequada. A politização da vida tem o importante papel de instigar o pensamento que nos tira do status-quo e faz a sociedade evoluir. Por exemplo, generalizar uma “inocente” piadinha machista dentro de um contexto de opressão sexual pode parecer um exagero para alguns, mas acho que esse é um importante caminho para mudar nossa mentalidade sobre o tema. Temos que nos policiar e não ter medo de reconhecer e descartar hábitos danosos. É mais difícil viver se questionando, mas dessa dificuldade nascem aprendizados, reflexões e, eventualmente, progresso. Por outro lado, a politização pode inibir o pensamento livre e o nascimento de terceiras, quartas e inúmeras outras vias possíveis, já que busca conformar tudo a lutas com lados já solidificados. Acredito que precisamos de menos politização em debates técnicos em meios especializados e em conversas entre amigos (inclusive nas redes sociais), uma vez que em muitos casos ela só serve às forças políticas tradicionais, não à busca da verdade. Por exemplo, a quem interessa dizer que qualquer reforma da previdência ou trabalhista implicará em prejuízos a quem mais precisa do apoio do Estado?; ou, inversamente, que qualquer um que se oponha a mudanças nessas áreas não entende nada de economia? São temas complexos que merecem debates sem demagogia.

Simplifiquei a questão separando duas esferas: a vida política e a que reside fora dela. Ocorre que essas duas esferas têm uma intersecção enorme, tornando o dilema que apresentei para cada uma presente também na outra. Bordões, conceitos deterministas e frases de ordem unem, mas emburrecem – a nós mesmos ou aos outros, motivo pelo qual nossa responsabilidade de comunicar ideias honesta e claramente deveria ser levada mais a sério. É possível formar novas uniões, e uma postura de autocrítica e de rigor com suas próprias ideias me parece ser o melhor caminho para se chegar a uma crença digna de apoio. São populares as piadinhas que reduzem a tolos os que têm opiniões alheias às nelas defendidas, principalmente porque criam um senso de comunidade. Por outro lado, a união que fomentam é do tipo “nós, que concordamos, somos muito mais espertos”. Só gostaria que ao se deparar com isso as pessoas pensem, talvez apenas dentro da sua cabeça e sem falar pra ninguém: será que não há nada de razão no outro lado?

Ter certezas e pinçar fatos e argumentos para confirmá-las (descartando sem muita reflexão os que as atingem) é de um conservadorismo danoso. A divergência é o que nos faz crescer, e num mundo (fictício) apolítico a convergência só é produtiva na medida em que nos dá confiança para divergir. A dificuldade está em estabelecer o que queremos “reduzir e politizar” e o que queremos verdadeiramente investigar num mundo (real) aonde todos os atos têm, em diferentes graus, consequências políticas. Para isso, é indispensável pensar e estimular que os outros façam o mesmo, questionando-nos e questionando-os até quando há concordância.

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